Segundo a reportagem de capa da revista INFO Exame deste mês, "a palavra fama nunca esteve tão ao alcance de cada um de nós – ao mesmo tempo em que o anonimato se torna um conceito cada vez mais distante". A mesma revista afirma que pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Inglaterra apontaram que ser famoso ou se tornar uma celebridade é reposta recorrente quando os jovens são interrogados sobre o que seria a melhor coisa do mundo. No Brasil, guardadas as proporções, os resultados não seriam muito diferentes: "Quero que minha opinião seja ouvida. Isso faz parte da celebrização", diz Rafinha Bastos, 33 anos, apresentador do programa CQC.
O esforço de se erguer entre a multidão de afogados, levantar o pescoço e respirar, manter-se em movimento para se destacar da massa cinzenta de submersos, parece uma imagem representativa da atual fase da modernidade. Mas, apesar de soar estranho em uma sociedade dominada pelo desejo de se afirmar um indivíduo diferente dos demais, esse desejo nem sempre existiu. Sabemos, além disso, que a própria noção de um "eu" que se distingui dos demais, o que supomos anteceder isso que talvez possamos mesmo chamar "celebrização", é uma construção histórica.
Pensando o surgimento da psicologia como ciência no séc. XIX, Luiz C. Figueiredo, em "Psicologia – uma (nova) introdução", sugere duas condições fundamentais para a solidificação dessa nova ciência. Em primeiro lugar, é necessário que haja uma clara experiência da subjetividade privatizada e, em segundo, é necessário que haja uma crise da experiência dessa subjetividade privatizada. Naturalmente, essas condições se configuram como orientação para pensar não só uma episteme, mas o próprio sujeito, sua constituição e seus desejos ao longo da história. Ao verificarmos o processo a que estamos nos referindo, veremos que se o sujeito moderno foi compreendido como "indivisível"- uma entidade "singular, distintiva, única", para lembrar Stuart Hall –, o homem medieval não conheceu sequer a noção de intimidade. Como garante o historiador francês Philippe Ariès, "a densidade social até o fim do séc. XVII proibia o isolamento e aqueles que se conseguiam fechar em um quarto por algum tempo eram vistos como figuras excepcionais".
A experiência das navegações e do Renascimento causou demasiada mudança no cotidiano do homem medieval. Ao lermos com atenção as obras dos historiadores, veremos que toda grande irrupção da experiência subjetiva privatizada ocorre em situação de crise, "quando uma antiga forma de vida é contestada e uma nova forma é sugerida". De fato, a possibilidade de intercâmbio propiciada pelas navegações no séc. XVI revelou diversas formas de vida colocando em xeque os paradigmas medievais. Como afirma Figueiredo, "quando há uma desagregação das velhas tradições e uma proliferação de novas alternativas, cada homem se vê voltado para seu 'foro íntimo' – aos seus critérios, que nem sempre condizem com o geral". Em outras palavras, a perda de referências coletivas faz o homem construir referências internas. "Quem eu sou? O que sinto? O que acho justo?", essas são algumas indagações que se tornam recorrentes. É o primeiro espaço de experimentação de uma subjetividade privatizada, ou seja, da noção de um "eu".
Assim, artisticamente e intelectualmente, o séc. XVI e XVII foi um período rico e intenso. Houve, nesse contexto, uma grande valorização do "Homem", que passou a ser pensado como centro do mundo – chave para o que posteriormente se chamaria humanismo moderno. Por isso tudo, o séc. XVI vê a criação de personagens que tornam todas essas concepções bem evidentes: Dom Quixote e Hamlet talvez sejam os exemplos mais representativos.
Outra reação que torna clara a configuração de um espaço para a experiência privatizada é a publicação em 1580 dos Ensaios, de Montaigne. Em sua obra, o pensador francês dá um testemunho da valorização da interioridade. Ainda na introdução, nos diz o autor que tomará a si mesmo como assunto. Não seria ousado dizer que é só a partir desse movimento de intensificação da distinção e do delineamento de um "eu" que será possível, por exemplo, a publicação das Confissões, de Rousseau, em 1764, e de toda literatura que se convencional chamar de romântica do séc. XVIII e XIX.
A valorização cada vez maior do "eu" e da intimidade, no entanto, levou a uma negação do espaço público. Segundo Ariès, já no séc. XVIII, "a família começou a manter a sociedade à distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular". A organização da casa, e da vida de modo geral, passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. O pensador francês alerta ainda para a necessidade de especialização dos cômodos da habitação. Segundo Ariès, foi certamente uma das maiores mudanças da vida cotidiana que respondia a uma ávida necessidade de isolamento.
Entretanto, por diversos caminhos, nos séculos XVIII e XIX, principalmente, a onipotência desse "eu" e da razão universal foi criticada. Por um lado, isso representou uma consciência mais sólida e complexa da produção de conhecimento e da razão, mas, por outro, representou a experimentação da crise da subjetividade privatizada – talvez o pensamento de Nietzsche tenha levado essa crise ao ponto máximo. Diversas formas de pensamento, na modernidade, conduziram à fragmentação da certeza de um "eu" singular e indivisível – a descoberta do inconsciente freudiano, por exemplo.
Ainda assim, ao longo da modernidade e do que podemos chamar potencialização do capitalismo, ou implementação do capitalismo tardio, a tarefa de se distinguir dos demais ocupou – e ocupa, hoje, mais do que nunca – o topo da agenda de seus habitantes. Numa sociedade de indivíduos como a nossa, cada um deve ser realmente um indivíduo e ser um individuo se traduz basicamente por ser diferente dos demais. No entanto, como ser um indivíduo em uma sociedade em que, ao contrário, seus habitantes são semelhantes em quase tudo?
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma que paradoxalmente "a individualidade se refere ao 'espírito de grupo' e precisa ser imposta por um aglomerado. Ser um indivíduo significa ser igual a todos no grupo – na verdade, idêntico aos demais." Sob essas circunstâncias, e sendo a individualidade um imperativo universal, como superar a homogeneidade da massa?
Nesse contexto, tornar-se uma celebridade e, enfim, se distinguir dos demais e ainda ser reconhecido por eles (pelo menos por algum tempo) parece ser um sonho. Mais do que desejar encontrar um "eu" que se diferencia dos outros, os habitantes da sociedade dos indivíduos querem ser reconhecidos pelos outros "eus". [Sobre essa dialética do reconhecimento, Hegel sem dúvida propõe uma discussão excessivamente densa em sua obra Fenomenologia do Espírito – tema a ser tratado em uma próxima publicação.]
A revista INFO Exame deste mês oferece dicas para os aflitos por alguns megas de fama. Em declaração à revista da Editora Abril, o apresentador Rafinha Bastos afirma: "Que bom que existe a web para alçar as pessoas a celebridades e tornar seu trabalho mais conhecido". De fato, essa impressão é difundida em amplidão e paira sobre grande parte dos pensadores da comunicação e de TI uma opinião demasiadamente deslumbrada e pouco reflexiva a respeito dessas tecnologias, da possibilidade de democratização de conteúdo e, a partir disso, do alcance da fama.
A web é, hoje, sem dúvida, um palco aberto. A esse respeito, uma afirmação do prof. Dr. Fábio Malini, no Seminário Rede Cultura Jovem 2009, resume habilmente esse pensamento. Ressalta Malini que a web é menos um espaço de download e cada vez mais um espaço de uploads. Em outras palavras, há entre os usuários um interesse cada vez maior na web enquanto espaço colaborativo. Assim, qualquer usuário que produza algum material pode disponibilizá-lo imediatamente. É claro, essa possibilidade de exibição em grande amplitude e em real time tem modificado decisivamente a produção desse mesmo material.
A facilidade dos uploads tem gerado uma enorme produção de informação e conteúdo. Entretanto, essa democratização não garante que o material disponibilizado seja acessado por um razoável número de usuários, menos ainda que haja a tão esperada projeção ao estrelato. A falsa impressão de maximização da exposição pessoal funciona como manutenção do desejo que é uma busca infindável, nesse caso, auto-contraditória e frustrante. A direção reflexiva que se deve tomar é uma crítica política da subjetividade, é interrogar-se, então, o que se deseja ao desejar a fama.
A facilidade dos uploads tem gerado uma enorme produção de informação e conteúdo. Entretanto, essa democratização não garante que o material disponibilizado seja acessado por um razoável número de usuários, menos ainda que haja a tão esperada projeção ao estrelato. A falsa impressão de maximização da exposição pessoal funciona como manutenção do desejo que é uma busca infindável, nesse caso, auto-contraditória e frustrante. A direção reflexiva que se deve tomar é uma crítica política da subjetividade, é interrogar-se, então, o que se deseja ao desejar a fama.