João Cabral, Joan Miró


Há um projeto estético em João Cabral de Melo Neto, um projeto estético intimamente ligado à crítica e à teorização da poesia e, mais ainda, à teorização do exercício poético. Pode-se supor que, de alguma forma, toda poética é, em si, proposição teórica de uma estética. No entanto, diferente do que poderia ser uma propriedade generalizante da poesia e da expressão artística, em Cabral, é um horizonte produtivo, específico e privilegiado da escrita.
Concomitante à sua produção poética, Cabral produziu um conjunto de pouco mais de dez textos em prosa, de mais ou menos fôlego (na verdade, a grande maioria são falas pronunciadas em eventos literários), que longe de querer justificar a poesia, se justapõe. Assim, imaginar essa produção, de alguma maneira, descolada da produção poética seria um equívoco. O célebre texto de Cabral sobre Joan Miró pode apontar para espaços mais verticais na discussão desse projeto estético.
É menos importante, mas João Cabral, desde sua chegada em 1947 a Barcelona (Cabral exercia o posto de diplomata), viveu intimamente com Miró. O artista plástico, desde seu regresso da França, estava proibido por Franco de expor. Cabral, no entanto, devido a sua ocupação política, teve, exclusivamente, a oportunidade de acompanhar essa fase do pintor. Foi a partir dessa experiência que redigiu seu escrito publicado em Barcelona em 1950 e no Brasil em 52.
Em seu livro, Cabral expõe dois elementos complementares e igualmente fundamentais da pintura de Joan Miró: a) o rompimento com o paradigma tradicional da composição renascentista e; b) o constante esquecimento de todo e qualquer hábito ou habilidade, o desaprender, que, resguardando a inocência de sua criação, mantém o vigor do inédito em seus quadros.
Cabral defende a tese de que “o Renascimento criou a pintura”. Segundo o poeta pernambucano, antes do Renascimento o que era pintado não se encontrava em nenhuma relação específica com os limites da superfície que o continha: a superfície era um elemento neutro, cuja função era unicamente suportar a figura pintada. Até então, somente na pintura decorativa a superfície era relevante, mas também em um sentido funcional.
Pode-se dizer que o Renascimento associou o objeto, isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorativa, isto é, à utilidade da contemplação. Dessa associação nasceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o quadro (são as palavras do poeta).
O professor e filósofo Fernando Pessoa, do Departamento de Filosofia da UFES, em sua conferência sobre João Cabral e Miró, proferida no seminário internacional Museu da Vale 2009, nos diz que a partir dessa associação [com a superfície], a representação da figura passa a ser estruturada em uma relação tanto com a paisagem, quanto com os limites do quadro, a moldura; e sempre no sentido de se obter, nas duas dimensões da superfície da tela, uma ilusão tridimensional do espaço, da paisagem na qual a figura se situa. Com isso, a pintura, desde o seu nascimento, vai buscar uma dimensão que não é propriamente a dela, a profundidade, mas própria do relevo e da escultura. Cabral ressalta o fato de que para o sentido de profundidade ocorrer na superfície do plano é necessário haver uma visão do conjunto estruturada a partir de um único ponto, aquele onde as três dimensões devem ser apreendidas simultânea e articuladamente. Por demanda da ilusão de terceira dimensão, na medida em que ela exige a fixação do espectador em um ponto ideal, no qual, e somente a partir do qual, essa ilusão se torna possível, a composição renascentista anulou o aparecer dinâmico do tempo em prol da aparência do espaço.
Em resumo, Cabral quer sustentar que em seu nascimento a pintura negligencia o ritmo do tempo a fim de conquistar o equilíbrio do espaço, obrigando o espectador ao exercer apenas uma única modalidade de sua visão, aquela que, detendo-se no ponto ideal do quadro, veja instantaneamente as suas três dimensões e, assim, obtenha a ilusão de profundidade na superfície pintada.
João Cabral critica essa composição, segundo o poeta, é nesse plano em que a inteligência não se dá conta, que ela se cristaliza em hábito (o costume, o hábito, se constitui numa lei que, embora não esteja dita nem escrita, todos conhecem e, de alguma forma, obedecem; ele forma a memória de uma tradição, a sua história, e, como ressalta o prof. Fernando Pessoa, foi pelo costume habitual dos preceitos de centralização, equilíbrio e harmonia, que a composição renascentista se tornou o modelo exemplar de toda pintura, determinando, até os dias atuais, a sua história.)
A partir disso, questiona o próprio poeta: será possível outra forma de composição? Seria possível devolver à superfície aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? – e ele mesmo responde. A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a essa pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar à superfície seu antigo papel:o de ser receptáculo do dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equilibrado que o aprisiona toda pintura criada com o renascimento.
Resumindo, mais uma vez, para o poeta, ao abandonar a ilusão de profundidade e, assim, libertar a composição de um centro dominante, a pintura de Miró rompeu com a tradição renascentista e, ao renegar o equilíbrio estático, resgatou a potência dinâmica, a fluência do tempo. Miró, contrário à hierarquização entre os elementos de seus quadros, desintegra a noção de unidade da tela – tudo, aqui, se propõe simultaneamente, exigindo do espectador uma série de observações sucessivas. Segundo o poeta, ele multiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descontínua.
O prof. Fernando Pessoa nos oferece mais elementos sobre essa reflexão:
Com suas linhas, Miró constitui organismos que nascem e crescem em formas vivas, dinâmicas, surpreendentes. Ao contrário do fio de Ariadne, que leva à saída, as linhas de Miró conduzem a visão por labirintos onde perdemos tudo que é conhecido, já sabido, certo – onde nos perdemos. Nessas linhas não há certezas, previsões, métodos, apenas descobertas, surpresas. Sempre recomeçando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem a visão habitual, automática e impõe, com o inusitado da surpresa, um olhar inocente, original.
Em outras palavras, a obra de Miró parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor para limpar o seu olho do visto e sua mão do automático [do hábito, da tradição]. Para colocar-se numa situação de pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade. É possível concluir, sobre Miró, que foi a partir e através dessa luta do trabalho de desaprender o já sabido que ele realizou uma efetiva superação da tradição. Portanto, tal superação não ocorre como um processo intelectual, teórico, mas com a força do desaprender todo o habitual. É o movimento de perder o automatismo para se abrir ao embate da criação, à necessidade de aprender o que fazer a partir, e na medida, de seu próprio acontecimento.
Retomando, agora, o que foi dito inicialmente, o caminho que propomos não é a teorização estética de Cabral como algo desagregado de sua produção poética. A investigação sobre Miró nos oferece, sem dúvida, não uma justificativa da obra literária, mas elementos que ajudam a pensar esse projeto estético.