52 anos de Cazuza



Cazuza e os 80
Se Cazuza estivesse vivo, no último dia 4, completaria 52 anos. Por ocasião de seu aniversário, fui convidado no dia 7 do mesmo mês a dar uma entrevista no Programa ViceVerso da Rádio Universitária do Espírito Santo, sobre o compositor. E as linhas que seguem adiante são alguns apontamentos previamente sistematizados.
Para muitos, inclusive para a famosa e infeliz edição da revista Veja de 16 de abril de 1989, “Cazuza não era um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está ao momento presente [os anos 80]”, para outros, Cazuza foi um ícone de sua geração e permanece uma referência de coragem e indignação.
Alfredo Bosi, em um texto intitulado “O tempo e os tempos”, nos diz que uma data é somente a ponta de iceberg e sob está data subjaz “o magma misterioso das paixões e das pulsões”. Sem dúvida, os anos 80 foram palco da efervescência desse magma. Imaginou-se que, superado o regime ditatorial no Brasil, o estado de bem estar social se estabeleceria, mas, “80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca”.
Os 80 presenciaram fatos que dissiparam, no Brasil talvez tardiamente, um paradigma de suma importância, o do futuro. O fim do comunismo autoritário, o exacerbado aumento da violência urbana (as crianças brincam/ com a violência/ nesse cinema sem tela/ que é a cidade), a radicalização neo-liberal e ascensão da sociedade de consumo que transformou tudo em produto pronto para ser consumido (inclusive “macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia"). Como Caio Fernando Abreu sugere, em Os sobreviventes, “sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?”
Imaginar que Cazuza, ou Caio Fernando Abreu, por tratarem de temas muito caros aos anos 80, restringiriam suas obras ao limite desses anos, é ter uma percepção permeada por fantasias. Basta ouvir com atenção parte da boa safra de compositores brasileiros do novo século para perceber o quão próximos ainda estamos dos gritos dos 80: “Por onde vou guiar/ O olhar que não enxerga mais?” e mais adiante, “A gente quer ver/ O horizonte distante”. A música assinada por Marcelo Camelo sugere sem meias palavras uma falta que nos remete imediatamente ao que falamos sobre futuro.
O prof. Ítalo Moriconi nos diz que, nos 80, “[o] rock afirmou-se como veículo privilegiado de expressão poética de uma nova juventude que já não viveu 68 mas ainda cultivava seus mitos. Presenças como as de Arnaldo Antunes, Renato Russo e de Cazuza, forneceram o mesmo tipo de pão essencial prodigamente distribuído vinte anos antes por Caetano e Chico.”

Cazuza, exagerado
Devido a alguns fatos biográficos e, sobretudo, a temas que tratam as obras, é possível muito facilmente aproximarmos três autores muito importantes para a história intelectual e artística do Brasil: Cazuza, Renato Russo e Caio Fernando Abreu. Todos eles foram profundamente influenciados pela tradição literária brasileira, pela música popular e por diversas outras referências do mundo pop. Além disso, tanto o tema da morte quanto o do amor atravessam de maneira semelhante e muito incisiva a obra desses compositores.
Outro fator de destaque, agora biográfico, é o fato de ambos assumirem publicamente uma bissexualidade, ou uma homossexualidade, pelo menos, e terem suas vidas interrompidas em plena produtividade por uma doença que, assim como no início do séc. XX foi a Tuberculose, se consolidou como um fantasma, a AIDS.
Por esse motivo, todos eles tiveram algo de urgente na escrita. Assim como Michel Foucault, na França – apesar de não se tratar de um artista.
Mas, o que, apesar de tudo, diferencia Cazuza dessas outras referências dos anos 80? Caetano, na orelha do livro “Preciso dizer que te amo”, parece responder a questão. Segundo o compositor baiano, “o que mais impressiona no corpo da produção de  Cazuza é a carga de esperança que ele suscita. Paradoxalmente, o monte de canções de desespero e lamento que nos deixou [...]. O paradoxo é só aparente. O tom desesperado está sempre cheio de gosto pela vida, e o lamento é antes sensualidade”.
As canções de “desespero e lamento” são aparentadas da tão popular “dor de cotovelo” representada, sobretudo, por Dolores Duran, Maysa e Lupicínio Rodrigues. Filho de cantora com presidente de gravadora, Cazuza teve contato desde muito cedo com a música popular, sobretudo com o samba-canção. Isso influenciou profundamente a maneira de compor.

Cazuza em diálogo  
Cazuza foi muito influenciado pelo samba-canção. As letras escritas por Cazuza se aproximam da “dor de cotovelo”, retratam muitas vezes um objeto amado que é buscado de bar em bar, um transeunte volátil, líquido que não pode ser segurado, sempre escapa. Ao mesmo tempo em que lança promessas de laço afetivo, é uma ameaça de traição. Mas, apesar da importância dessa mediação oferecida por Lupicínio e por outros, Cazuza não deixou de dialogar diretamente com a tradição literária brasileira, sobretudo com o romantismo.
Uma perceptível referência feita pelo poeta compositor é um diálogo com Álvares de Azevedo. No poema Por que mentias, da "Lira dos vinte anos", um eu-lírico pergunta: “Por que mentias leviana e bela?/ se minha face pálida sentias/ Queimada pela febre, e minha vida/ Tu vias desmaiar, por que mentias?”. E o eu-lírico pergunta insistentemente “Por que mentias?”. A referência é clara, em Codinome beija-flor, Cazuza parece atualizar o mito do amor impossível (romântico por excelência), também indagando “Por que mentir/ fingir que perdoou?”.
E as referências, diálogos e intertextos não param por aí. Uma análise minuciosa e sistemática da obra de Cazuza revelaria o quão denso pode ser o seu rock.

Ideologia
Talvez a música mais densa e ao mesmo tempo mais popular de Cazuza seja Ideologia. A canção é um profundo mergulho na crítica de uma subjetividade privatizada. Observando a capa do disco de 1989 ou o clip da música, observamos como Cazuza evidencia diversos símbolos ideológicos que se dissolveram nos anos 80: a foice e o martelo comunista, o medalhão hippie de paz e amor, a cruz suástica, Cristo, entre outros. O poeta, assim como Caio Fernando Abreu, em Os sobreviventes, reconhece o esvaziamento desses significantes, e afirma ostensivamente “Ideologia / eu quero uma pra viver”.
A esse respeito, lembro ainda de uma música entoada por John Lennon, composta anos antes, mas que já anunciava de alguma forma tudo que foi dito. Em God, Lennon afirmava enfaticamente, I don't believe (in Magic, I-ching, Bible, Tarot, Jesus, Gita, Yoga, Beatles).
Entretanto, além desse aspecto político, Ideologia nos traz algo novo em Cazuza: “Meu prazer/ agora é risco de vida”. Cazuza fala, aqui, da AIDS. Curiosamente, apesar de Cazuza ter assumido publicamente a doença, ao falar da doença em suas letras, o poeta é sempre discreto se comparado a seus contemporâneos Renato Russo e Caio Fernando Abreu.
Na obra de Caio é possível perceber diversas menções à doença em contos e, principalmente, em seu último romance, Onde Andará Dulce Veiga. Já Renato Russo, apesar de não ter assumido tão facilmente sua doença publicamente, usou o tema como substrato em diferentes canções. Em Metal contra as nuvens, por exemplo: “Tenho os sentidos já dormentes/ O corpo quer, a alma entende/ Esta é a terra-de-ninguém/ Sei que devo resistir/ Eu quero a espada em minhas mãos”. E fica mais claro ainda em A Via Láctea, quando o autor parece descrever sintomas da doença: “Hoje a tristeza não é passageira/ hoje fiquei com febre a tarde inteira/ e quando chegar a noite/ cada estrela parecerá uma lágrima”.
Acentuando uma diferença entre os dois compositores, me arrisco a dizer que Cazuza via a “desgraça da vida com humor”, mas Renato Russo não. Humor, aqui, como afirmação de potência – da vida, de viver. Não há depressão em Cazuza. Talvez, uma música que ilustre isso seja Boas novas. Cazuza escreve: “Eu vi a cara da morte/ e ela estava viva/ Viva!”. Se lermos o primeiro “viva” como adjetivo e o segundo como imperativo do verbo “viver”, entenderemos as palavras de Caetano a seu respeito.

Vida e obra
Em um depoimento de 1983, ano de sua morte, Ana Cristina César fala sobre vida, obra, diário e intimidade. Em resumo, a autora fala sobre sua suposta obra literária autobiográfica: “Aqui não é diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção”.
Certamente, inspirados principalmente por Fernando Pessoa, os anos 70 e 80 foram os anos das personas: Ana Cristina César é Ana C.; Caio Fernando Abreu é Caio F.; Renato Manfredini Jr. é Renato Russo e Agenor de Miranda Araújo Neto é Cazuza.
A intimidade é sempre mediada por uma “luva de pelica” que se constitui como um jogo. Por isso, é muito perigoso associarmos imediatamente vida e obra. E Cazuza insiste nesse jogo de invenção e reinvenção. Depois de tudo que foi dito, ele nos surpreende com a canção Nunca sofri por amor: “É duro dizer/ Mas nunca sofri mais de dez minutos por amor” e mais adiante “Vivo de músicas românticas/ E não sou romântico”. 

Como todo grande autor, Cazuza não pode ser decifrado, suas canções e significações não podem ser apreendidos, sob qualquer impulso de contenção, ele nos escapa e se ergue inesgotável.