Ítalo Galiza apresenta Marcos Ramos

Matéria da Revista Nós

por Ítalo Galiza

O silêncio fala. Linha. Rompê-lo é um mecanismo da poesia. Corpo. Marcos Alexandre Ramos começa a experimentar a vida no dia 15 de janeiro de 1988, em Vitória. Inquietação. A leitura foi seu primeiro contato com a palavra. Paladar. Primeiro sentido o gosto da prosa, um pouco depois olhou mais de perto o que estava no verso. Inspiração. De Caio Fernando Abreu a Hilda Hilst. De Sérgio Sant`Anna a Machado de Assis. Como vai, Dom Casmurro? Luz. Sua mochila literária o leva à graduação em Letras-Português, pela Ufes. Direção. Fez parte do grupo de pesquisa Literatura e outros sistemas de significação. Sabores lacanianos. Marcos Ramos também cursa Psicologia pela Faculdades Integradas Espirito-Santenses (Faesa). Arte. Pretende fazer mestrado em teoria psicanalítica. Desejo. A apatia o provoca. A superficialidade o inquieta. Música. A sensibilidade dele passa por uma paisagem sonora. Ramos é pianista e compositor. Sua poesia ouve Egberto Gismonti, Arvo Pärt e Milton Nascimento. Ritmo. O corpo de uma linha é seu livro de estréia, com previsão de lançamento para o primeiro semestre deste ano. Futuro. A próxima obra de Marcos Ramos já está a caminho, ainda sem data de finalização: Toda palavra é crueldade (título extraído de um poema de Orides Fontela). Navalha. O jovem escritor quer causar desconforto para fazer as pessoas sentirem. Língua. Há margem à palavra? O corpo transforma-se em poema e a linha em verso. Deguste.

O corpo de uma linha e o operariado do silêncio: avivar na língua a potência do não-dito

Texto publicado originalmente na Revista Rua/Unicamp
por Isadora Machado


As próprias palavras transpiram silêncio.
Eni Orlandi


O corpo de uma linha é o livro de estréia do também poeta Marcos A. Ramos. Já de início, o título nos toma de assalto e, imagino, caso o visse numa vitrine de livraria, o leitor já se sentiria perturbado. O corpo de uma linha, o corpo de uma linha… - ressoariam insistentes os sentidos múltiplos. De todo modo, no título já há um sinal: trata-se também da palavra poemática que se inscreve no corpo navalhado insistentemente pela letra. E em nada disso há abstração: nem na palavra, que é pedra insistentemente talhada pelo poeta; e nem no corpo, que é lugar febril de inscrita da duvidosa prosa.

O livro, em princípio, perpassa diversos temas que se alinham por um mesmo gesto: agir com/n’/sobre/sob o silêncio fundador. O corpo de uma linha é uma obra que atua de modo cuidadoso no limite da palavra-som e da palavra-forma. M. A. Ramos se coloca, nesse sentido, como um operário do silêncio e consegue, como propõe, “compreender a nota no corpo morto/da composição”. O exercício, nesse caso, “é avivar na língua/a potência do não-dito”.

A palavra que funda, faz. E, ao fazer, quer “saber de cor o silêncio/ - e profaná-lo, dissolvê-lo/em palavras”, como lembra a epígrafe de Orides Fontela. E a epígrafe não é apenas recurso estético de filiação, mas prenúncio. Profanar o silêncio, tirá-lo de seu lugar místico e fazer dele instrumento. A tensão insistente causada pela vontade de deslustrar a página em branco é matéria-prima de trinta e oito poemas muito bem dispostos.

O primeiro poema do livro, O exercício do verso, já expõe o quadro febril do corpo: se antes tocado pela ausência, agora é o fluxo da palavra que o toca e faz dele morada da letra. Seja a manhã exata, seja o pulso desatado, tudo isso, lembra o poeta, conflui à palavra.

Na confluência do fluido, no “desconforto/ incessante que habita/ o museu de tudo”, em todo curso, uma direção que “sabe/a insuficiência de manter/passos de prosseguir”. Insuficiência que não é, de modo algum, errância. Em O corpo de uma linha, a palavra sabe de sua insuficiência diante da latência de sentido que pulsa no silêncio.

Há algum tempo já nos disse E. Orlandi que “há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude da linguagem: todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer”. Desse modo, Ramos compõe “no silêncio resignado de ausências”, agindo na incompletude da linguagem e produzindo significação. Para Orlandi, o lugar da incompletude não é o lugar dos “acidentes de linguagem”. Assim também para Ramos: “a propriedade poemática/de um tenso silêncio/se anuncia não na fratura espessa/do trauma cravado no verso/mas na duvidosa prosa/inscrita em corpo”.

Em Os povos, silenciar os sentidos táteis é vivificar os sentidos hábeis do corpo na medida em que este é inscrito pela letra. Sempre rever o desejo e transmudá-lo da palavra-perene será “hesitar o peso da morada”. Nunca estacionar o sentido, já que ele “não pára; ele muda de caminho”. Mudar de caminho, para Ramos, é permanecer unicamente “na voracidade da fome que não me detém”.

Traçando um paralelo com o tempo em latim, E. Orlandi explica que “a palavra imprime-se no contínuo significante do silêncio e ela o marca, o segmenta e o distingue em sentidos discretos, constituindo um tempo (tempus) no movimento contínuo (aevum) dos sentidos no silêncio”. M. A. Ramos age exatamente no contínuo significante do silêncio, como se esse contínuo fosse uma corda firmemente estendida e que, por isso, ressoa sempre, dando o tom para que a palavra surja.

O dedo mínimo tateia o movimento contínuo do silêncio, fazendo com que possamos ouvir a segmentação do sentido: música de sobrevivência. O dedo mínimo do poeta ora inaugura o verso, ora “em superfície porosa/antecipa o som monocórdico”. O silêncio mínimo passa a estar também “o ventre que já não oculta/qualquer perene sensação".

Ao ser preciso na escolha do que não será dito, M. A. Ramos permite que os poemas se abram a inúmeras significações. Ao ser preciso na escolha do que é dito, o poeta permite a exaltação do mínimo e, com isso, “pára o movimento/sem coalhar a paisagem/que se desenha no olho”.

Em O corpo de uma linha, o corpo é também paisagem. Paisagem nunca imóvel, já que sempre um corpo contemporâneo. Ao navalhar o corpo das linhas, nosso poeta estre[l]ante converte corpo em poema, linha em verso. A poesia, essa fica por conta do silêncio que habita todo o resto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ORLANDI, E. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

RAMOS, M. A. O corpo de uma linha. (mimeo).

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*Este trabalho foi realizado com o auxílio do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

*Isadora Machado é graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Espírito Santo e mestranda em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas. Sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Guimarães, trabalha na área de História das Idéias Lingüísticas e desenvolve o projeto de dissertação “Para além das palavras e das coisas: Friedrich W. Nietzsche e as Ciências da Linguagem”.

Desejo, celebrização, fama


Segundo a reportagem de capa da revista INFO Exame deste mês, "a palavra fama nunca esteve tão ao alcance de cada um de nós – ao mesmo tempo em que o anonimato se torna um conceito cada vez mais distante". A mesma revista afirma que pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Inglaterra apontaram que ser famoso ou se tornar uma celebridade é reposta recorrente quando os jovens são interrogados sobre o que seria a melhor coisa do mundo. No Brasil, guardadas as proporções, os resultados não seriam muito diferentes: "Quero que minha opinião seja ouvida. Isso faz parte da celebrização", diz Rafinha Bastos, 33 anos, apresentador do programa CQC.
O esforço de se erguer entre a multidão de afogados, levantar o pescoço e respirar, manter-se em movimento para se destacar da massa cinzenta de submersos, parece uma imagem representativa da atual fase da modernidade. Mas, apesar de soar estranho em uma sociedade dominada pelo desejo de se afirmar um indivíduo diferente dos demais, esse desejo nem sempre existiu. Sabemos, além disso, que a própria noção de um "eu" que se distingui dos demais, o que supomos anteceder isso que talvez possamos mesmo chamar "celebrização", é uma construção histórica.
Pensando o surgimento da psicologia como ciência no séc. XIX, Luiz C. Figueiredo, em "Psicologia – uma (nova) introdução", sugere duas condições fundamentais para a solidificação dessa nova ciência. Em primeiro lugar, é necessário que haja uma clara experiência da subjetividade privatizada e, em segundo, é necessário que haja uma crise da experiência dessa subjetividade privatizada. Naturalmente, essas condições se configuram como orientação para pensar não só uma episteme, mas o próprio sujeito, sua constituição e seus desejos ao longo da história. Ao verificarmos o processo a que estamos nos referindo, veremos que se o sujeito moderno foi compreendido como "indivisível"- uma entidade "singular, distintiva, única", para lembrar Stuart Hall –, o homem medieval não conheceu sequer a noção de intimidade. Como garante o historiador francês Philippe Ariès, "a densidade social até o fim do séc. XVII proibia o isolamento e aqueles que se conseguiam fechar em um quarto por algum tempo eram vistos como figuras excepcionais".
A experiência das navegações e do Renascimento causou demasiada mudança no cotidiano do homem medieval. Ao lermos com atenção as obras dos historiadores, veremos que toda grande irrupção da experiência subjetiva privatizada ocorre em situação de crise, "quando uma antiga forma de vida é contestada e uma nova forma é sugerida". De fato, a possibilidade de intercâmbio propiciada pelas navegações no séc. XVI revelou diversas formas de vida colocando em xeque os paradigmas medievais. Como afirma Figueiredo, "quando há uma desagregação das velhas tradições e uma proliferação de novas alternativas, cada homem se vê voltado para seu 'foro íntimo' – aos seus critérios, que nem sempre condizem com o geral". Em outras palavras, a perda de referências coletivas faz o homem construir referências internas. "Quem eu sou? O que sinto? O que acho justo?", essas são algumas indagações que se tornam recorrentes. É o primeiro espaço de experimentação de uma subjetividade privatizada, ou seja, da noção de um "eu".
Assim, artisticamente e intelectualmente, o séc. XVI e XVII foi um período rico e intenso. Houve, nesse contexto, uma grande valorização do "Homem", que passou a ser pensado como centro do mundo – chave para o que posteriormente se chamaria humanismo moderno. Por isso tudo, o séc. XVI vê a criação de personagens que tornam todas essas concepções bem evidentes: Dom Quixote e Hamlet talvez sejam os exemplos mais representativos.
Outra reação que torna clara a configuração de um espaço para a experiência privatizada é a publicação em 1580 dos Ensaios, de Montaigne. Em sua obra, o pensador francês dá um testemunho da valorização da interioridade. Ainda na introdução, nos diz o autor que tomará a si mesmo como assunto. Não seria ousado dizer que é só a partir desse movimento de intensificação da distinção e do delineamento de um "eu" que será possível, por exemplo, a publicação das Confissões, de Rousseau, em 1764, e de toda literatura que se convencional chamar de romântica do séc. XVIII e XIX.
A valorização cada vez maior do "eu" e da intimidade, no entanto, levou a uma negação do espaço público. Segundo Ariès, já no séc. XVIII, "a família começou a manter a sociedade à distância, a confiná-la a um espaço limitado, aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular". A organização da casa, e da vida de modo geral, passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. O pensador francês alerta ainda para a necessidade de especialização dos cômodos da habitação. Segundo Ariès, foi certamente uma das maiores mudanças da vida cotidiana que respondia a uma ávida necessidade de isolamento.
Entretanto, por diversos caminhos, nos séculos XVIII e XIX, principalmente, a onipotência desse "eu" e da razão universal foi criticada. Por um lado, isso representou uma consciência mais sólida e complexa da produção de conhecimento e da razão, mas, por outro, representou a experimentação da crise da subjetividade privatizada – talvez o pensamento de Nietzsche tenha levado essa crise ao ponto máximo. Diversas formas de pensamento, na modernidade, conduziram à fragmentação da certeza de um "eu" singular e indivisível – a descoberta do inconsciente freudiano, por exemplo.
Ainda assim, ao longo da modernidade e do que podemos chamar potencialização do capitalismo, ou implementação do capitalismo tardio, a tarefa de se distinguir dos demais ocupou – e ocupa, hoje, mais do que nunca – o topo da agenda de seus habitantes. Numa sociedade de indivíduos como a nossa, cada um deve ser realmente um indivíduo e ser um individuo se traduz basicamente por ser diferente dos demais. No entanto, como ser um indivíduo em uma sociedade em que, ao contrário, seus habitantes são semelhantes em quase tudo?
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma que paradoxalmente "a individualidade se refere ao 'espírito de grupo' e precisa ser imposta por um aglomerado. Ser um indivíduo significa ser igual a todos no grupo – na verdade, idêntico aos demais." Sob essas circunstâncias, e sendo a individualidade um imperativo universal, como superar a homogeneidade da massa?
Nesse contexto, tornar-se uma celebridade e, enfim, se distinguir dos demais e ainda ser reconhecido por eles (pelo menos por algum tempo) parece ser um sonho. Mais do que desejar encontrar um "eu" que se diferencia dos outros, os habitantes da sociedade dos indivíduos querem ser reconhecidos pelos outros "eus". [Sobre essa dialética do reconhecimento, Hegel sem dúvida propõe uma discussão excessivamente densa em sua obra Fenomenologia do Espírito – tema a ser tratado em uma próxima publicação.]
A revista INFO Exame deste mês oferece dicas para os aflitos por alguns megas de fama. Em declaração à revista da Editora Abril, o apresentador Rafinha Bastos afirma: "Que bom que existe a web para alçar as pessoas a celebridades e tornar seu trabalho mais conhecido". De fato, essa impressão é difundida em amplidão e paira sobre grande parte dos pensadores da comunicação e de TI uma opinião demasiadamente deslumbrada e pouco reflexiva a respeito dessas tecnologias, da possibilidade de democratização de conteúdo e, a partir disso, do alcance da fama.
A web é, hoje, sem dúvida, um palco aberto. A esse respeito, uma afirmação do prof. Dr. Fábio Malini, no Seminário Rede Cultura Jovem 2009, resume habilmente esse pensamento. Ressalta Malini que a web é menos um espaço de download e cada vez mais um espaço de uploads. Em outras palavras, há entre os usuários um interesse cada vez maior na web enquanto espaço colaborativo. Assim, qualquer usuário que produza algum material pode disponibilizá-lo imediatamente. É claro, essa possibilidade de exibição em grande amplitude e em real time tem modificado decisivamente a produção desse mesmo material.

A facilidade dos uploads tem gerado uma enorme produção de informação e conteúdo. Entretanto, essa democratização não garante que o material disponibilizado seja acessado por um razoável número de usuários, menos ainda que haja a tão esperada projeção ao estrelato. A falsa impressão de maximização da exposição pessoal funciona como manutenção do desejo que é uma busca infindável, nesse caso, auto-contraditória e frustrante. A direção reflexiva que se deve tomar é uma crítica política da subjetividade, é interrogar-se, então, o que se deseja ao desejar a fama.

Nossas tantas poéticas de/em “Drummond”


Crítica do espetáculo "Drummond", do Grupo Ponto de Partida, direção de Regina Bertola

Em 1987, sob a direção de Regina Bertola, o Grupo Ponto de Partida estreou o espetáculo “Drummond”. Aclamado por críticos como Dinorath do Valle, Roberto Massoni e Alberto Guzik, o espetáculo, durante os 10 anos próximos, foi motivo de exaltação por onde passou – Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Itabira, Barbacena, entre outros.

Mais de 20 anos depois, o espetáculo “Drummond” volta ao tablado e destila em ribalta toda potência da palavra poética. Sim, é a palavra poética, o verso drummondiano, que orienta os caminhos do espetáculo. De imediato, chama atenção a destreza do encadeamento textual – amarração dos poemas, silêncios, gestos, imagens e sons. “Drummond” não é um espetáculo pós-moderno, de fragmentos ou desconstruções. Mas é a partir do próprio fragmento poético que se criou uma malha (e não um mosaico, pois nesse identificamos limites e costuras) propulsora da experiência poética – por isso nova e ousada.

Diferentes momentos na poesia de Drummond sugerem certa paridade com a biografia de Carlos (ora infantil, ora adulta e erótica, ora fúnebre), entretanto, a feliz escolha da supressão de uma personagem Carlos e a diluição da palavra poética em “Teresa”, “Arabela”, “a empregada do fiscal de Câmara”, “Márgara”, e outros tantos rostos que apesar de não serem Carlos, são Drummond, acentuam a propriedade mais singular da criação: a universalidade da poesia.

Assim, supor que em “Drummond” a poesia ilustra meramente a vida de um poeta de Itabira é subestimar a potência do que transcende o sujeito. A poesia transcende o sujeito na linguagem que diz do absolutamente particular, por mais paradoxal que possa parecer.

O espetáculo “Drummond” não é uma abordagem técnica e menos ainda historicista da literatura. Transborda do palco uma direção para o poético, isto é, para a criação de sentidos que é infinita – cada fluidor do espetáculo, a partir da sua experiência estética, leva um poeta para casa. Ninguém leva necessariamente a biografia de Carlos. A construção do espetáculo, ao escapar a exatidão da comunicação meramente informativa, se abre, no poético, ao catártico.

Há de se destacar o sutil passo com que se caminha, no espetáculo, do trágico ao cômico e ao erótico, da leitura dialógica do poema ao monólogo assistido e ao contar de histórias. Cada encenação do texto drummondiano é, assim, a abertura de tantas possíveis leituras. Destaca-se, nesse contexto, a interpretação dialógica e cheia de humor de “No meio do caminho” e, de forma sofisticada, porque sutil, sua passagem melancólica à canção bituquiana “Itamarandiba”; em outro momento a passagem do frenesi carnavalesco tão marcado pelas marchinhas ao conflituoso “José”; e ainda o especial tratamento textual, encadeamento poético e trabalho de atuação nos momentos de grande sugestão erótica (“A mão visionária”, “O chão e a cama”, “A puta”, “Cabaré Mineiro”).

Merece destaque a atuação de tantos que, quem sabe, fosse mais fácil não colocar um dos atores em relevo. No entanto, melhor nos contradizermos, pois é necessário por em sobressalto a atuação de Carolina Damasceno – que ainda muito criança participou também da primeira montagem do espetáculo em 1987. Carolina, na recente montagem de “Drummond”, nos presenteia com um dos raros momentos de delicada leveza no teatro recente. A interpretação de “Canção amiga” (música de Milton Nascimento, poema de Drummond), em exata afinação, manejo e dosagem de vibratos, é um desses momentos de respiração, em que o poético faz transbordar sentidos e tudo mais no sujeito faz se calar por um instante.

Outros momentos musicais foram muito felizes, inclusive a trilha, sem dúvida, em relação muito estreita com os textos, com Drummond, a poesia, o trem mineiro, as montanhas e os vales: Heitor Villa Lobos, Egberto Gismonti e Milton Nascimento.

A habilidade corporal, interpretativa, habilidade de representação, os momentos mais musicais ou os momentos de maior silêncio, deixam claro que “Drummond” é resultado de um trabalho árduo, e o palco é sem dúvida a ponta de um iceberg que se constitui de muita pesquisa, leituras, ensaios, desenvolvimento de linguagens, amadurecimento de idéias e construção coletiva. É por restabelecer um vínculo com a tradição do teatro da palavra e da representação – não fragmentária ou nas vias de um retardatário vanguardismo – que o Ponto de Partida, sob a direção de Regina Bertola, se consolida a cada (re)montagem como um coletivo demasiadamente criativo.
*Imagens de Rodrigo Dai
Mais detalhes sobre o Ponto de Partida e apresentações: www.grupopontodepartida.com.br

52 anos de Cazuza



Cazuza e os 80
Se Cazuza estivesse vivo, no último dia 4, completaria 52 anos. Por ocasião de seu aniversário, fui convidado no dia 7 do mesmo mês a dar uma entrevista no Programa ViceVerso da Rádio Universitária do Espírito Santo, sobre o compositor. E as linhas que seguem adiante são alguns apontamentos previamente sistematizados.
Para muitos, inclusive para a famosa e infeliz edição da revista Veja de 16 de abril de 1989, “Cazuza não era um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está ao momento presente [os anos 80]”, para outros, Cazuza foi um ícone de sua geração e permanece uma referência de coragem e indignação.
Alfredo Bosi, em um texto intitulado “O tempo e os tempos”, nos diz que uma data é somente a ponta de iceberg e sob está data subjaz “o magma misterioso das paixões e das pulsões”. Sem dúvida, os anos 80 foram palco da efervescência desse magma. Imaginou-se que, superado o regime ditatorial no Brasil, o estado de bem estar social se estabeleceria, mas, “80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca”.
Os 80 presenciaram fatos que dissiparam, no Brasil talvez tardiamente, um paradigma de suma importância, o do futuro. O fim do comunismo autoritário, o exacerbado aumento da violência urbana (as crianças brincam/ com a violência/ nesse cinema sem tela/ que é a cidade), a radicalização neo-liberal e ascensão da sociedade de consumo que transformou tudo em produto pronto para ser consumido (inclusive “macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia"). Como Caio Fernando Abreu sugere, em Os sobreviventes, “sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?”
Imaginar que Cazuza, ou Caio Fernando Abreu, por tratarem de temas muito caros aos anos 80, restringiriam suas obras ao limite desses anos, é ter uma percepção permeada por fantasias. Basta ouvir com atenção parte da boa safra de compositores brasileiros do novo século para perceber o quão próximos ainda estamos dos gritos dos 80: “Por onde vou guiar/ O olhar que não enxerga mais?” e mais adiante, “A gente quer ver/ O horizonte distante”. A música assinada por Marcelo Camelo sugere sem meias palavras uma falta que nos remete imediatamente ao que falamos sobre futuro.
O prof. Ítalo Moriconi nos diz que, nos 80, “[o] rock afirmou-se como veículo privilegiado de expressão poética de uma nova juventude que já não viveu 68 mas ainda cultivava seus mitos. Presenças como as de Arnaldo Antunes, Renato Russo e de Cazuza, forneceram o mesmo tipo de pão essencial prodigamente distribuído vinte anos antes por Caetano e Chico.”

Cazuza, exagerado
Devido a alguns fatos biográficos e, sobretudo, a temas que tratam as obras, é possível muito facilmente aproximarmos três autores muito importantes para a história intelectual e artística do Brasil: Cazuza, Renato Russo e Caio Fernando Abreu. Todos eles foram profundamente influenciados pela tradição literária brasileira, pela música popular e por diversas outras referências do mundo pop. Além disso, tanto o tema da morte quanto o do amor atravessam de maneira semelhante e muito incisiva a obra desses compositores.
Outro fator de destaque, agora biográfico, é o fato de ambos assumirem publicamente uma bissexualidade, ou uma homossexualidade, pelo menos, e terem suas vidas interrompidas em plena produtividade por uma doença que, assim como no início do séc. XX foi a Tuberculose, se consolidou como um fantasma, a AIDS.
Por esse motivo, todos eles tiveram algo de urgente na escrita. Assim como Michel Foucault, na França – apesar de não se tratar de um artista.
Mas, o que, apesar de tudo, diferencia Cazuza dessas outras referências dos anos 80? Caetano, na orelha do livro “Preciso dizer que te amo”, parece responder a questão. Segundo o compositor baiano, “o que mais impressiona no corpo da produção de  Cazuza é a carga de esperança que ele suscita. Paradoxalmente, o monte de canções de desespero e lamento que nos deixou [...]. O paradoxo é só aparente. O tom desesperado está sempre cheio de gosto pela vida, e o lamento é antes sensualidade”.
As canções de “desespero e lamento” são aparentadas da tão popular “dor de cotovelo” representada, sobretudo, por Dolores Duran, Maysa e Lupicínio Rodrigues. Filho de cantora com presidente de gravadora, Cazuza teve contato desde muito cedo com a música popular, sobretudo com o samba-canção. Isso influenciou profundamente a maneira de compor.

Cazuza em diálogo  
Cazuza foi muito influenciado pelo samba-canção. As letras escritas por Cazuza se aproximam da “dor de cotovelo”, retratam muitas vezes um objeto amado que é buscado de bar em bar, um transeunte volátil, líquido que não pode ser segurado, sempre escapa. Ao mesmo tempo em que lança promessas de laço afetivo, é uma ameaça de traição. Mas, apesar da importância dessa mediação oferecida por Lupicínio e por outros, Cazuza não deixou de dialogar diretamente com a tradição literária brasileira, sobretudo com o romantismo.
Uma perceptível referência feita pelo poeta compositor é um diálogo com Álvares de Azevedo. No poema Por que mentias, da "Lira dos vinte anos", um eu-lírico pergunta: “Por que mentias leviana e bela?/ se minha face pálida sentias/ Queimada pela febre, e minha vida/ Tu vias desmaiar, por que mentias?”. E o eu-lírico pergunta insistentemente “Por que mentias?”. A referência é clara, em Codinome beija-flor, Cazuza parece atualizar o mito do amor impossível (romântico por excelência), também indagando “Por que mentir/ fingir que perdoou?”.
E as referências, diálogos e intertextos não param por aí. Uma análise minuciosa e sistemática da obra de Cazuza revelaria o quão denso pode ser o seu rock.

Ideologia
Talvez a música mais densa e ao mesmo tempo mais popular de Cazuza seja Ideologia. A canção é um profundo mergulho na crítica de uma subjetividade privatizada. Observando a capa do disco de 1989 ou o clip da música, observamos como Cazuza evidencia diversos símbolos ideológicos que se dissolveram nos anos 80: a foice e o martelo comunista, o medalhão hippie de paz e amor, a cruz suástica, Cristo, entre outros. O poeta, assim como Caio Fernando Abreu, em Os sobreviventes, reconhece o esvaziamento desses significantes, e afirma ostensivamente “Ideologia / eu quero uma pra viver”.
A esse respeito, lembro ainda de uma música entoada por John Lennon, composta anos antes, mas que já anunciava de alguma forma tudo que foi dito. Em God, Lennon afirmava enfaticamente, I don't believe (in Magic, I-ching, Bible, Tarot, Jesus, Gita, Yoga, Beatles).
Entretanto, além desse aspecto político, Ideologia nos traz algo novo em Cazuza: “Meu prazer/ agora é risco de vida”. Cazuza fala, aqui, da AIDS. Curiosamente, apesar de Cazuza ter assumido publicamente a doença, ao falar da doença em suas letras, o poeta é sempre discreto se comparado a seus contemporâneos Renato Russo e Caio Fernando Abreu.
Na obra de Caio é possível perceber diversas menções à doença em contos e, principalmente, em seu último romance, Onde Andará Dulce Veiga. Já Renato Russo, apesar de não ter assumido tão facilmente sua doença publicamente, usou o tema como substrato em diferentes canções. Em Metal contra as nuvens, por exemplo: “Tenho os sentidos já dormentes/ O corpo quer, a alma entende/ Esta é a terra-de-ninguém/ Sei que devo resistir/ Eu quero a espada em minhas mãos”. E fica mais claro ainda em A Via Láctea, quando o autor parece descrever sintomas da doença: “Hoje a tristeza não é passageira/ hoje fiquei com febre a tarde inteira/ e quando chegar a noite/ cada estrela parecerá uma lágrima”.
Acentuando uma diferença entre os dois compositores, me arrisco a dizer que Cazuza via a “desgraça da vida com humor”, mas Renato Russo não. Humor, aqui, como afirmação de potência – da vida, de viver. Não há depressão em Cazuza. Talvez, uma música que ilustre isso seja Boas novas. Cazuza escreve: “Eu vi a cara da morte/ e ela estava viva/ Viva!”. Se lermos o primeiro “viva” como adjetivo e o segundo como imperativo do verbo “viver”, entenderemos as palavras de Caetano a seu respeito.

Vida e obra
Em um depoimento de 1983, ano de sua morte, Ana Cristina César fala sobre vida, obra, diário e intimidade. Em resumo, a autora fala sobre sua suposta obra literária autobiográfica: “Aqui não é diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção”.
Certamente, inspirados principalmente por Fernando Pessoa, os anos 70 e 80 foram os anos das personas: Ana Cristina César é Ana C.; Caio Fernando Abreu é Caio F.; Renato Manfredini Jr. é Renato Russo e Agenor de Miranda Araújo Neto é Cazuza.
A intimidade é sempre mediada por uma “luva de pelica” que se constitui como um jogo. Por isso, é muito perigoso associarmos imediatamente vida e obra. E Cazuza insiste nesse jogo de invenção e reinvenção. Depois de tudo que foi dito, ele nos surpreende com a canção Nunca sofri por amor: “É duro dizer/ Mas nunca sofri mais de dez minutos por amor” e mais adiante “Vivo de músicas românticas/ E não sou romântico”. 

Como todo grande autor, Cazuza não pode ser decifrado, suas canções e significações não podem ser apreendidos, sob qualquer impulso de contenção, ele nos escapa e se ergue inesgotável.

A escrita do feminino, o feminino


A mulher, como garante Simone de Beauvoir¹, foi historicamente rechaçada de diversos campos do saber. Sua presença como autora, sabemos, ocorreu praticamente nos últimos três séculos e foi inicialmente camuflada pelo uso de pseudônimos masculinos - na literatura inglesa, por exemplo, no século XIX, com exceção de Jane Austen (Orgulho e preconceito), que assinava o próprio nome. Mary Anne Evan, para citar uma delas, passou à História como George Eliot (tradutora de Vida de Jesus de David Strauss) – curiosamente, foi descoberta por Dickens na leitura de uma de suas obras.

No século XX, entretanto, conhecemos autoras inglesas que não escamotearam o sexo. É o caso de Virgínia Woolf, que não só assumiu sua identidade enquanto mulher, como escreveu textos hegemonicamente sobre a condição feminina. Além disso, sabe-se que Woolf pronunciou conferências e palestras para operárias, quando, certamente, sua preocupação era o lugar da mulher no plano cultural e na própria sociedade. A obra de Woolf, no entanto, não nutri a estridência feminista da segunda metade do século XX, mas, certamente, tem clara noção dos entraves que perturbam a escrita da mulher. O texto já é, portanto, uma colocação da existência de uma tradição da escrita feminina.

É evidente que a obra de Virginia Woolf não trata de uma questão de gênero, este é considerado inclusive pela própria autora inglesa um constructo social que pode ser superado. Não podemos afirmar que Woolf foi a primeira escritora inglesa, mas certamente é nela que se pode sentir mais claramente a consciência da condição feminina na criação literária. Um dos pontos fundamentais e que antecedem importantes aspectos do famoso ensaio feminista de Simone de Beauvoir, está no reconhecimento de que a mulher é aprisionada por uma série de desvantagens. Além de viver num mundo definido em termos masculinos, ela não tem liberdade de exprimir qualquer coisa da experiência humana que acentue a natureza feminina, principalmente as experiência físicas. A autora inglesa nunca abandonou a idéia de que a escrita feminina é diferente por questões sociais e não psicológica.

Posteriormente, em 1949, com a publicação do Segundo Sexo, Simone de Beauvoir enfatizara que apesar do homem e da mulher nascerem em condições semelhantes e, naturalmente, com possibilidades subjetivas semelhantes, existe uma construção social do gênero mulher que implicará em condições de vida diversas - não só devido a um constructo social, mas também psicológico. Simone de Beauvoir representa a passagem de um primeiro movimento de questionamento da condição feminina, ainda em fase inicial, para uma segunda fase, que se volta para as diferenças sexuais e as discriminações sofridas pela mulher, agora, de caráter mais efetivamente político - que desaguaram em um movimento feminista.

A década de 60 representou o ponto alto no movimento de libertação feminina, com Betty Friedan, por exemplo. O movimento feminista, particularmente, teve que lutar contra uma série de crenças que, embora partindo de questões reais, desviam-se no sentido de ratificar a inferioridade da mulher. Mais do que uma cultura feminina, coloca-se a questão da escrita feminina. Seria ela específica ou a especificidade estaria apenas na preferência por determinados temas? Esta é uma questão que permanece nublada. É, no entanto, evidente que algumas características podem ser visualizadas como definidoras da escrita feminina. Isto ocorre no plano estrutural, como também na freqüência de determinados temas. O feminismo se coordenou posteriormente com outras tendências, inclusive com o Marxismo, e foi adquirindo, ao longo do tempo, uma base teórica em relação às afirmações iniciais - de caráter mais emocionais.

Tanto como uma crítica teórica quanto como movimento social, a questão feminina, representante de outras tendências que foram incorporadas ao discurso marxista (revoltas estudantis, movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, lutas pelos direitos civis, movimentos revolucionários e tudo aquilo que está associado com “1968”), segundo o teórico cultural Stuart Hall, em seu livro Identidade cultural na pós-modernidade², corrobora a fragmentação do sujeito moderno. Hall inclui o feminismo – ou simplesmente a questão do feminino - entre os cinco acontecimentos que corroboraram a fluidificação do sujeito cartesiano - os outros quatro são a teoria econômica e filosófica de Marx, a psicanálise de Freud, a lingüística de Saussure e o pensamento de Foucault. Hall sublinha que o feminismo “questinou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e “público”. O slogan do feminismo era: o pessoal é político.” Ele abriu, portanto, para a contestação política, arenas inteiramente novas de vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc. O feminismo, além disso, enfatizou como uma questão política e social o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas). Aquilo que começou como um movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero. Em outras palavras, o feminismo questionou a noção de que os homens e as mulheres eram parte da mesma identidade, a “Humanidade”, substituindo-a pela questão da diferença sexual.

Por diversos motivos, sugiro um filme para o dia de hoje - particularmente um dos meus favoritos. Trata-se de "The Hours", no elenco Nicole Kidman, Julianne Moore e Meryl Streep, a trilha sonora fica por conta de Philip Glass. O longa é dirigido por Stephen Daldry. 

¹BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo.
²HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

Sobre a poesia de Casé Lontra Marques – Parte 1

Autor de três livros exaustivamente elogiados pela crítica (Mares Inacabados, Flor&Cultura 2008; Campo de Ampliação, Lumme Editor 2009; A densidade do céu sobre a demolição, Confraria do Vento 2009), Casé Lontra Marques tem se mostrado um dos poetas mais profícuos e sólidos de sua geração. Nos livros de Casé Lontra Marques, como em toda grande obra literária, a profusão de linhas mestras evita um delineamento muito pontual, uma definição que encerre o que seria um âmago ou um cerne temático. O estilhaço existencial que se dilui na língua impede a fixação de uma única haste que sustente o vigor da poesia. Há, todavia, pelo menos dois horizontes de análise, coexistentes e justapostos, que norteiam a possibilidade de apreensão de um movimento para uma poética: um com vistas ao que chamaremos busca pela palavra e, outro, fundado no que nomeamos sujeito que se estabelece.
Antes de ir de fato ao exercício de análise, duas possíveis problemáticas merecem menção e incitam, de antemão, mínimo esclarecimento. A primeira diz respeito à própria proposta de apreensão de uma poética, ou seja, da forma, do como se faz, de um poeta estreante, até então, com três livros publicados. Quanto à primeira questão, esperamos que as obras justifiquem-na. Todavia, a segunda nos parece mais relevante. Sabe-se que, de alguma forma, o caráter estrutural representado basicamente pelos dois eixos de análise propostos (busca pela palavra e sujeito que se estabelece) está presente em toda poesia. Entretanto, esses horizontes de apreensão foram aqui instituídos (ou evocados) porque, mais do que uma constituição estrutural da expressão artística, as diretrizes que serão postas a seguir apontam para um incessante movimento de constituição da poesia. Além de um processo generalizante do exercício artístico, a justaposição dos movimentos é, em Casé Lontra Marques, um horizonte produtivo, específico e privilegiado da escrita.
No eixo busca pela palavra verifica-se um incessante deslocamento sinestésico e imagético que se dá na tensão quase sempre antitética do verso, na antinomia que atrita a abstração e a concretude, ou, como ressalta o crítico Luis Alberto Brandão, a "materialidade sensória e a vocação intelectiva e abstratizante" ("espinha da palavra"; "soco no tórax do tempo"; "pulmão da claridade"; "sol inchado na palma do paladar"). Além disso, compreende-se, também, nesse horizonte de ação analítica, o deslocamento de procura como a reincidente experimentação da sintaxe, definida no ritmo, na retomada, na repetição, no fluxo e na ressignificação do elementar grupo de signos que é encenado (corpo, argamassa, cidade, detergente, dente, metal, osso, pedra, operário, pássaro). A poesia de Casé Lontra Marques, ao se reapropriar incessantemente de signos cotidianos (dentes, osso, omoplata, detergente, vidraça, tórax, tornozelos, saliva, siderúrgico), os mantém em constante descolamento de sentido. Ela é, categoricamente, local de avivamento do sentido fossilizado da língua (Barthes).

Um segundo prisma temático que instrumentalizará a análise tende a problematização do sujeito que se estabelece, o que podemos definir, também, como a análise do local da enunciação e do discurso, a voz (ou as vozes) do texto poético. Tanto em Mares Inacabados como em Campo de Ampliação e mais ainda em A densidade do céu sobre a demolição, a subjetividade, longe de toda assepsia impessoal, encena e é encenada, como garante Maria Esther Maciel, "ora através de um 'nós' cauteloso, ora através de um jogo de aparecimento/desaparecimento", a consciência de uma "outridade" que se revela a) no edifício temático (violência, cidade, corpo, desconforto, apatia), b) na ressignificação e no diálogo com a tradição literária (há, como veremos, densos diálogos e discussões, principalmente, com a poesia de Fiama Hasse Brandão, Herberto Helder e João Cabral de Melo Neto); e c) numa arqueologia do sujeito – o "eu", na poesia de Casé Lontra Marques, suscita demasiado interesse, pois se revela e se oculta com exatidão, ao mesmo tempo que se configura ciente da crise de uma subjetividade privatizada (termo usado por Luiz C. Figueiredo), é pós-cabralino, porque não nega um sujeito, ao contrário, assume, pontualmente, uma subjetividade demarcada, como podemos observar nos seguintes versos: "Aluguei um quarto, falta/ agora a solidão. Serei// todo paredes// para o incêndio// prestes// a respirar". Ou ainda, "Agora// que encontrei para onde/ voltar, pretendo/ apenas ter passos de prosseguir". E em diversos outros momentos.
A poesia de Casé nos oferece elementos que apontam para uma íntima relação com o sujeito que se estabelece na escrita cabralina, e essa pode ser uma interessante chave de leitura. O que significa, no verso, "o sol do sarcasmo", "o sol (...) simulado na dispensa da distração", "o sol (...) estritamente calcário". "o sol inchado na palma do paladar", "o sol do sexo", "o sol do suor"? Qual sua relação com "o sol do deserto", o sol que seca a flauta de Anfion, o sol que "não intumesce a vida / como a um pão", o sol lúcido de João Cabral de Melo Neto?
Procurar na perseguição da metáfora uma chave comum é, nessa poesia, declinar em consumo. "O poema ensina a cair / sobre os vários solos", nos diz Luiza Neto Jorge, "desde perder o chão repentino sob os pés / como se perde os sentidos numa / queda de amor, ao encontro / do cabo onde a terra abate e / a fecunda ausência excede". Não é outra coisa senão a própria escrita poética que indica o método, ou seja, o caminho de uma apreensão nunca exata, sempre um por vir: (ou como sugere o próprio poeta) "Será preciso aceitar o movimento para talvez espetar a ponta da língua na fibra efêmera que dilata a potência do paladar". Tatear o longo poema ora se aproximando do sarcasmo ora da atenção é como aceitamos este movimento.
Alcides Villaça, no ensaio Expansão e limite da poesia de João Cabral, destaca como leitmotiv, em Pedra do sono, o "eu morto" e suas conseqüências. O crítico sublinha que, na poesia do pernambucano, a "primeira pessoa gramatical está obsessivamente assumida, mas no modo paradoxal de quem o faz para declarar a sua ausência (...): os olhos se mecanizam em telescópios, os pensamentos em telegramas, a experiência viva em folha de jornal, a poesia em revólver, o tempo na roda de um carrossel". O "eu", em Cabral, abandonado (ainda que sem a perda do sujeito dito racional), se insinua no silêncio das máquinas e aparelhos da modernidade, pois refuta a privatização da subjetividade tão cara aos românticos. Resta, como garante Alcides Villaça, à inatividade do sujeito cabralino, "a recepção transfigurada que converte tudo em 'flores secas', em 'sol gelado', em 'lua morta', em 'frutas decapitadas', em 'águas paradas".
A poética de Casé Lontra Marques se constitui de modo paradoxal, pois, ao contrário dos modernos, não refuta nada, o passado não é mais apagado, é recuperado, incorporado e compartilhado com outras versões de si. Assim, enquanto na poesia cabralina, as "máquina e aparelhos do mundo moderno parecem sublinhar mais fortemente a inatividade exasperante desse sujeito", na poesia de Casé Lontra Marques o signo se corporifica e toma ares de uma subjetividade que, como em Cabral, é minada pela asfixia da modernização, mas assume, aqui, uma subjetividade, ainda que enviesada.
Enquanto o sujeito, em Cabral, silencia na assepsia da coisa, no texto de Casé, a cidade se corporifica e goza de um rosto, de vários rostos: "Através da vidraça trincada, dá pra ver a cara calma / da calçada. Prédios em vez de asas. / Quando escurecer, o corpo edificará sua cota / de argamassa. Algo branco / seduz a cidade som solidez de fumaça. / Depois de respirar, aceito / o sol na medida exata do furo de uma bala." Maria Esther Maciel nos diz que "o 'eu' em Campo de Ampliação [e, sem dúvida, é uma característica dos outros livros do poeta], longe de se expor em alto relevo, é oblíquo e discreto, encenando, ora através de um nós cauteloso, ora através de um jogo de aparecimento/desaparecimento da própria voz que enuncia uma subjetividade também consciente de sua própria 'outridade'".
Discursando sobre o retorno do sujeito à arte, a psicanalista Tania Rivera (UNB) parece propor espaços mais verticais de discussão. Segundo a psicanalista, o sujeito
(...) se desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou e se deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Em vez de manter o jogo da alteridade que o constitui como alienado de si mesmo, em vez de brincar de ser outro, em uma mobilidade que pode por vezes fixar, por algum tempo, alguma posição, diante do desmantelamento crítico da representação ele parece dissolver-se a ponto de se retirar. Ele diria, em vez de 'o Eu é um outro': Eu não é. Mas é quando ele não tem mais lugar na representação, justamente, que ele pode se apresentar: retornar como convocação direta ao espectador. Com-vocação: convite a tomar a palavra, a ter voz. Convite que é como uma mensagem apagada jogada dentro do mar, carregando o belo risco de não chegar a ninguém. (Conferência publicada em Criação e Crítica – Seminários Internacionais Museu Vale 2009)

Na poesia cabralina, o sujeito se vê anulado pela presença maciça do objeto, ele se retira para que o objeto se apresente como entidade autônoma. O que acontece na poesia de Casé Lontra Marques parece ser o inverso, o objeto convoca o sujeito. Há uma subjetivação do objeto, que goza de um rosto: "A próxima esquina será uma outra cidade com novos olhos". E não mais "os olhos se mecanizam em telescópios, os pensamentos em telegramas, a experiência viva em folha de jornal, a poesia em revólver, o tempo na roda de um carrossel", como no poeta pernambucano - objeto, aqui, no sentido tradicional da filosofia e da psicologia do conhecimento, ou seja, "enquanto correlativo do sujeito que percebe e conhece, é aquilo que se oferece como característica fixa e permanente" (Laplanche) e não necessariamente numa acepção correlativa à pulsão.
A relação desenvolvida é, pois, um laço com a tradição: a partir do momento em que o Eu não é (em Cabral), ele se enuncia, em Casé, não como representação do outro, mas como convocação.
(Afirmar que o "eu" da não-representação do outro retorna como convocação é imbricar uma sucessão de resguardos e o primeiro deles é que essa não-representação não está pautada no conceito de representação desenvolvido por Roland Barthes, por exemplo, mas, numa representação que advém do conceito lacaniano de real – é uma aporia que não deve ser lapidada agora.)
Ainda em seu discurso sobre a volta do sujeito à arte, a psicanalista propõe (via Lacan e Hal Foster) o "retorno do real" como uma noção essencial para a arte contemporânea. Assim, nos diz Tania Rivera, passaríamos "da realidade como efeito de representação para o real como uma coisa de trauma". A determinação do termo "traumático", segundo Freud, não tem outro sentido senão o econômico. Em uma das conferências introdutórias da psicanálise de 1916, Freud no diz que se trata de um estímulo tão excessivamente poderoso que não pode ser manejado ou elaborado de maneira normal; poderíamos pensar em um copo que, com determinada capacidade quantitativa (econômica), é excedido, transborda. E se vale a pena nos apropriarmos desse conceito clínico, devemos nos perguntar: em que a poesia transborda ou faz transbordar?
E a resposta deve ser encontrada na função de apoio que desempenha a busca pela palavra sob o sujeito que se estabelece e "no apelo direto ao espectador [leitor] que busca comparecer o sujeito no real, por fora do enquadre do drama, da representação", do simbólico. Como destaca Cinda Gonda, há em Mares Inacabados (e pode ser estendido aos dois outros livros) uma forte crítica social, um olhar que presencia a falta, a catatonia ("recupero a água enterrada na asfixia/ produzida// pela falta de fala"); a miséria ("posso ouvir a manhã espetar// a fome empedrada na espinha/ dos pivetes"); ausência e a apatia ("o corpo prefere a mudez do medo ao movimento da reflexão"). Entretanto, mesmo quando esse sujeito urgente é tema da poesia, não é a representação que está em jogo, mas, na convocação (com-vocação, chamar à palavra), a proposição de uma crítica política da subjetividade, em um sentido que não se contrapõe ao encenar (por em cena), mas ao fingir ser – "o poema", mais uma vez recorrendo à Luiza Neto Jorge, é "um duelo agudíssimo (...) apontado ao coração do homem". E agora nos parece muito incisivo retomar a primeira epígrafe do mais novo livro de Casé para acentuar nossa dispersão: "Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade" (Clarice Lispector).
No que consiste essa função de apoio supracitada (evidentemente aparentada de um vocabulário freudiano)? Os livros de Casé são tortuosos, absolutamente múltiplos e cada vez mais múltiplos e isso se deve menos a uma questão temática que convulsiva da linguagem (enquanto estrutura, já que tudo mais é também o que constitui a linguagem). É na linguagem e somente na linguagem que se pode colocar em suspenso, desarmar e arrebatar – e aqui talvez fizéssemos concordar Heidegger, Wittegestein, Lacan e Guimarães Rosa. Em uma de suas famosas conferências caraquenhas sobre o pensamento de Lacan, Jacques-Alain Miller afirma que a linguagem transforma o indivíduo humano até em seu corpo, no mais profundo de si mesmo, transforma suas necessidades, transforma seus afetos – esta seria sem dúvida a grande aposta da psicanálise e o grande elo, desde sempre, sublinhado por Freud, com a literatura.

A escrita poética de Casé Lontra Marques intensifica uma desorientação (ou uma "reorientação dos atos de distração"), é o passo que rompe o silêncio do sujeito (ora expressão minimalista da contenção da fala ora uma repetição imoderada e tautológica) e conduz ao desconforto da proposição de novas estruturas de fala (uma possibilidade de alargamento da intensidade, a imposição dos ilimitados mares inacabados ou de um campo de ampliação). A propriedade traumática da poesia seria, assim, a provocação na (e pela) linguagem (a incessante obsessão pela sintaxe, pelo ritmo, pela imagem) que quer exceder a elaboração do sujeito, ou seja, toda estrutura de assimilação e agregação a uma cadeia de significados.

[continua]

João Cabral, Joan Miró


Há um projeto estético em João Cabral de Melo Neto, um projeto estético intimamente ligado à crítica e à teorização da poesia e, mais ainda, à teorização do exercício poético. Pode-se supor que, de alguma forma, toda poética é, em si, proposição teórica de uma estética. No entanto, diferente do que poderia ser uma propriedade generalizante da poesia e da expressão artística, em Cabral, é um horizonte produtivo, específico e privilegiado da escrita.
Concomitante à sua produção poética, Cabral produziu um conjunto de pouco mais de dez textos em prosa, de mais ou menos fôlego (na verdade, a grande maioria são falas pronunciadas em eventos literários), que longe de querer justificar a poesia, se justapõe. Assim, imaginar essa produção, de alguma maneira, descolada da produção poética seria um equívoco. O célebre texto de Cabral sobre Joan Miró pode apontar para espaços mais verticais na discussão desse projeto estético.
É menos importante, mas João Cabral, desde sua chegada em 1947 a Barcelona (Cabral exercia o posto de diplomata), viveu intimamente com Miró. O artista plástico, desde seu regresso da França, estava proibido por Franco de expor. Cabral, no entanto, devido a sua ocupação política, teve, exclusivamente, a oportunidade de acompanhar essa fase do pintor. Foi a partir dessa experiência que redigiu seu escrito publicado em Barcelona em 1950 e no Brasil em 52.
Em seu livro, Cabral expõe dois elementos complementares e igualmente fundamentais da pintura de Joan Miró: a) o rompimento com o paradigma tradicional da composição renascentista e; b) o constante esquecimento de todo e qualquer hábito ou habilidade, o desaprender, que, resguardando a inocência de sua criação, mantém o vigor do inédito em seus quadros.
Cabral defende a tese de que “o Renascimento criou a pintura”. Segundo o poeta pernambucano, antes do Renascimento o que era pintado não se encontrava em nenhuma relação específica com os limites da superfície que o continha: a superfície era um elemento neutro, cuja função era unicamente suportar a figura pintada. Até então, somente na pintura decorativa a superfície era relevante, mas também em um sentido funcional.
Pode-se dizer que o Renascimento associou o objeto, isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorativa, isto é, à utilidade da contemplação. Dessa associação nasceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o quadro (são as palavras do poeta).
O professor e filósofo Fernando Pessoa, do Departamento de Filosofia da UFES, em sua conferência sobre João Cabral e Miró, proferida no seminário internacional Museu da Vale 2009, nos diz que a partir dessa associação [com a superfície], a representação da figura passa a ser estruturada em uma relação tanto com a paisagem, quanto com os limites do quadro, a moldura; e sempre no sentido de se obter, nas duas dimensões da superfície da tela, uma ilusão tridimensional do espaço, da paisagem na qual a figura se situa. Com isso, a pintura, desde o seu nascimento, vai buscar uma dimensão que não é propriamente a dela, a profundidade, mas própria do relevo e da escultura. Cabral ressalta o fato de que para o sentido de profundidade ocorrer na superfície do plano é necessário haver uma visão do conjunto estruturada a partir de um único ponto, aquele onde as três dimensões devem ser apreendidas simultânea e articuladamente. Por demanda da ilusão de terceira dimensão, na medida em que ela exige a fixação do espectador em um ponto ideal, no qual, e somente a partir do qual, essa ilusão se torna possível, a composição renascentista anulou o aparecer dinâmico do tempo em prol da aparência do espaço.
Em resumo, Cabral quer sustentar que em seu nascimento a pintura negligencia o ritmo do tempo a fim de conquistar o equilíbrio do espaço, obrigando o espectador ao exercer apenas uma única modalidade de sua visão, aquela que, detendo-se no ponto ideal do quadro, veja instantaneamente as suas três dimensões e, assim, obtenha a ilusão de profundidade na superfície pintada.
João Cabral critica essa composição, segundo o poeta, é nesse plano em que a inteligência não se dá conta, que ela se cristaliza em hábito (o costume, o hábito, se constitui numa lei que, embora não esteja dita nem escrita, todos conhecem e, de alguma forma, obedecem; ele forma a memória de uma tradição, a sua história, e, como ressalta o prof. Fernando Pessoa, foi pelo costume habitual dos preceitos de centralização, equilíbrio e harmonia, que a composição renascentista se tornou o modelo exemplar de toda pintura, determinando, até os dias atuais, a sua história.)
A partir disso, questiona o próprio poeta: será possível outra forma de composição? Seria possível devolver à superfície aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? – e ele mesmo responde. A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a essa pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar à superfície seu antigo papel:o de ser receptáculo do dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equilibrado que o aprisiona toda pintura criada com o renascimento.
Resumindo, mais uma vez, para o poeta, ao abandonar a ilusão de profundidade e, assim, libertar a composição de um centro dominante, a pintura de Miró rompeu com a tradição renascentista e, ao renegar o equilíbrio estático, resgatou a potência dinâmica, a fluência do tempo. Miró, contrário à hierarquização entre os elementos de seus quadros, desintegra a noção de unidade da tela – tudo, aqui, se propõe simultaneamente, exigindo do espectador uma série de observações sucessivas. Segundo o poeta, ele multiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descontínua.
O prof. Fernando Pessoa nos oferece mais elementos sobre essa reflexão:
Com suas linhas, Miró constitui organismos que nascem e crescem em formas vivas, dinâmicas, surpreendentes. Ao contrário do fio de Ariadne, que leva à saída, as linhas de Miró conduzem a visão por labirintos onde perdemos tudo que é conhecido, já sabido, certo – onde nos perdemos. Nessas linhas não há certezas, previsões, métodos, apenas descobertas, surpresas. Sempre recomeçando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem a visão habitual, automática e impõe, com o inusitado da surpresa, um olhar inocente, original.
Em outras palavras, a obra de Miró parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor para limpar o seu olho do visto e sua mão do automático [do hábito, da tradição]. Para colocar-se numa situação de pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade. É possível concluir, sobre Miró, que foi a partir e através dessa luta do trabalho de desaprender o já sabido que ele realizou uma efetiva superação da tradição. Portanto, tal superação não ocorre como um processo intelectual, teórico, mas com a força do desaprender todo o habitual. É o movimento de perder o automatismo para se abrir ao embate da criação, à necessidade de aprender o que fazer a partir, e na medida, de seu próprio acontecimento.
Retomando, agora, o que foi dito inicialmente, o caminho que propomos não é a teorização estética de Cabral como algo desagregado de sua produção poética. A investigação sobre Miró nos oferece, sem dúvida, não uma justificativa da obra literária, mas elementos que ajudam a pensar esse projeto estético.

Os sapatinhos vermelhos, de Caio Fernando Abreu

(Ensaio originalmente publicado na revista de estudos literários Pequena Morte, número XVI) 

I


Adelina, desnorteada protagonista de Os Sapatinhos Vermelhos, de Caio Fernando Abreu, movida pela cólera produzida ao término de um relacionamento afetivo, decide sair de sua casa para satisfazer seus desejos e preencher suas ausências subjetivas. Um espaço de variedades múltiplas, atraentes cardápios, opções de degustação, gôndolas de afeto, uma composição de fumaça, uísque, pouca iluminação: a transeunte protagonista de Caio Fernando Abreu elege a boate urbana como espaço de trânsito e vitrine de consumo. Lá, Adelina está livre para encontrar diversos parceiros, aleatórios e anônimos, acolher e produzir espasmos sexuais. Entre Adelina e seus possíveis parceiros, não há diálogo propriamente dito, não há troca de idéias, experiências ou memórias. Existe, apenas, uma breve troca de olhares que antecede um ligeiro reconhecimento. Como garante o narrador: “pacientes, divertidos, excitados: só cumpriram o ritual até chegar o ponto”. A protagonista, inserida no anonimato ofertado pela cidade, parece leve e pronta.

II

Ser leve e líquido. Segundo Zygmunt Bauman, o estado de fluidez é a representação adequada para captar o modo como se configura a presente fase da modernidade - momento em que se insere a narrativa de Caio Fernando Abreu. A metáfora sobre o fluido (ou o líquido) tem raízes na famosa frase do “derretimento dos sólidos” cunhada pelos autores do Manifesto comunista. Em 1848, como nos lembra o pensador polonês, a frase “referia-se ao tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade, que considerava estagnada demais para seu gosto e também resistente em demasia para mudar em seus caminhos habituais”. Se o “espírito” era “moderno”, como recapitula Bauman, ele o era na medida em que a sociedade deveria ser emancipada da inércia de sua própria história, e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos, isto é, “dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo.”

“‘Derreter os sólidos’, na modernidade, significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações ‘irrelevantes’”, era necessário, além disso, livrar-se de todo e qualquer entulho e obrigação que impedisse as iniciativas: “libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama de obrigações éticas; ou, como preferiria Tomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”. De forma progressiva, o espírito moderno tornou-se um espírito contábil e preencheu o dia de inúmeros seres humanos com “comparações, cálculos, determinações numéricas” e a “redução de valores qualitativos a valores quantitativos”.

Além de clamar pela libertação de todos os vínculos que resultaram historicamente no estado e na religião, na moral e na economia, o sujeito moderno, resistente ao nivelamento subjetivo enunciado pelo estreitamento entre as relações de alteridade e a economia monetária, reivindicou, como garante o sociólogo Simmel, “a particularidade humana” - “os indivíduos, liberados dos vínculos históricos tradicionais, agora desejavam se distinguir um do outro”. Progressivamente, a modernidade se tornou o local da enunciação dos mecanismos de individuação e experimentou os grandes centros urbanos como palco dos conflitos que circunscrevem este processo.
Georg Simmel aponta elementos fundamentais da constituição e do modo como se organizam as sociedades urbanas. Segundo o pensador alemão, a metrópole tem uma função essencial no desenvolvimento da modernidade, pois com a velocidade e as diversas formas da vida econômica, profissional e social que proporciona, fornece a arena para o incessante movimento de seus habitantes, visto que se define como “o lugar da divisão econômica do trabalho, da especialização, da fragmentação e do rompimento com vínculos históricos tradicionais.”

No entanto, como sublinha Bruno Souza Leal, “ao longo do século XX, muitas transformações interpuseram uma distância entre o mundo do flâneur e o do habitante da metrópole contemporânea” . Se a metrópole moderna nasce sob o signo da ruptura, da cisão dos padrões e da fragmentação da tradição, a metrópole contemporânea (ou pós-moderna), local de enunciação das narrativas de Caio Fernando Abreu, se distingue, pois nela o “passado não é mais apagado”, ao contrário, “é recuperado, incorporado, sendo compartilhado inclusive com outras versões de si e, assim, torna-se mais um território escrito/inscrito/escritor da malha urbana.”

Falar hoje em “derretimento dos sólidos”, modernidade líquida ou ainda em metrópole pós-moderna, significa referir-se a uma sociedade constituída de diversas possibilidades de existência e configuração subjetiva e modos de vida. Significa, ainda, reportar-se a um lugar em que seus habitantes não possuem a liberdade como uma opção ou como um processo de constituição subjetiva, tem, paradoxalmente, a obrigação e a necessidade de liberdade de escolha. No entanto, livrar-se do peso dos mundos sólidos da modernidade, ou seja, ser leve e líquido, como recomenda a racionalidade pós-moderna (nas palavras de Bauman, a líquida racionalidade moderna), ao contrário do que escreveu Freud em sua análise sobre a modernidade, na modernidade líquida, não garante modos de vida que impliquem seguranças, certezas e garantias (unsicherheit) subjetivas e materiais.

As mudanças estruturais nas bases da modernidade tornaram-se, dessa maneira, fonte de um novo mal-estar – naturalmente, diverso daquele a que aludia o pensador vienense em seu famoso texto – e passaram a corresponder ao que poderíamos denominar uma afirmação problemática dos mecanismos de subjetivação.

O sujeito líquido (ou pós-moderno) e aquele do fim da modernidade, personagens de Caio Fernando Abreu, estão em condições para transitar, mas parecem destinados a uma condição subjetiva entre a melancolia latente e a fragilidade dos laços, pois habitam espaços efêmeros (urbanos e subjetivos) e tateiam, no fluxo, possibilidades, apenas, fugazes. Como veremos em Os sapatinhos vermelhos, impelidos por estímulos artificiais a fim de preencher a lacuna que os separa das relações de alteridade e, portanto, da sociabilidade efetiva, os indivíduos, dominados por intensa angústia, estão fadados “a perambular pelas ruas numa infindável e eterna vã procura de abrigo”.

III

O texto Os Sapatinhos vermelhos, de Os Dragões não conhecem o paraíso, é divido em três partes, o primeiro momento é reservado para o anúncio do término de uma relação afetiva entre a protagonista e um personagem anônimo, descrito como um professor, “um-senhor-de-família-da-Vila-Mariana”. Em seguida, ainda na primeira parte do texto, verifica-se a reconstrução da identidade da protagonista e a reorganização dos possíveis sentidos implicados na constituição dessa nova identidade.

O narrador conduz a história, no início, em um espaço hegemonicamente subjetivo em que a protagonista, imersa em reflexões regadas a doses de uísques e tragadas de cigarro, repensa, não sem um acre sabor de ironia, momentos em que, segundo a própria personagem, esteve submissa aos desejos do seu amante. Vejamos no texto de Caio Fernando Abreu:

Uma japa, uma gueixa, isso que eu fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas – Glenn Miller ou Charles Aznavour? –, vertendo trêfega os sais – camomila ou alfazema? – na água da banheira, preparando uísques – uma ou duas pedras hoje, meu bem?

A narração, em Os sapatinhos vermelhos, operada como uma câmera sem suporte, oscila entre o olhar da protagonista narrado em primeira pessoa e em terceira pessoa, e aquele de um narrador heterodiegético. No espaço subjetivo encenado na narrativa, o narrador, apresentando-se predominantemente de forma heterodiegética, é peça decisiva na construção da identidade da protagonista. Enquanto a narradora-personagem descreve experiências e insatisfações referentes ao rompimento do laço afetivo, o narrador heterodiegético revela, já desde o início, a necessidade de mudança do processo de efetivação do desejo que será desenvolvido problematicamente no decorrer do texto.

Ao longo da primeira parte do texto, a protagonista Adelina, que “evitava cores, saltos, pinturas, decotes, dourados ou qualquer outro detalhe capaz sequer de sugerir sua secreta identidade de mulher solteira-e-independente-que-tem-um-amante-casado”, em decorrência do abandono afetivo (leia-se: interrupção do desejo), caminha em direção a uma prática contrária aos elementos repressivos contidos nos símbolos moralizantes da cultura. Isso fica mais evidente quando o narrador situa a história no período da Sexta-feira Santa para o Sábado de Aleluia - momento, segundo a tradição judaico-cristã, da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ironicamente, o que prevalece na narrativa não é o amor cristão (Ágape), mas o desejo do corpo, a atração carnal (Eros). O conto Os Sapatinho Vermelhos é, sobretudo, uma história sobre a vitória de Eros.

Adelina, após o término da relação com o professor, depara-se com um esvaziamento absoluto de sua identidade. Aqui, observamos uma alusão ao ritual cristão, onde a morte representaria o término do laço e a ressurreição, por sua vez, o início da reconstrução dos fragmentos de identidade e a renovação de um eu dividido. Os sapatinhos vermelhos, presente dado a Adelina pelo amante, simbolizam, no texto, o momento da reconfiguração da identidade. Se outrora a protagonista julgara o objeto ofertado ousado, agora, lhe parecia apropriado.

Após um longo e detalhado ritual de transformação inaugurado pelos sapatinhos vermelhos, Adelina se livra de qualquer atributo moralizante que organizava seu comportamento. Vejamos, no texto de Caio F.:
(...) sublinhou os olhos de negro, escureceu os cílios, espalhou perfume no rego dos seios, nos pulsos, na jugular, atrás das orelhas, para exalar quando você arfar, minha filha, então as meias de seda negra transparente, costura atrás, tigresa noir(...)

Apagou a luz do quarto, olhou-se no espelho de corpo inteiro do corredor. Gostou do que viu. Bebeu o último gole de uísque e, antes de sair, jogou na gota dourada do fundo do copo o filtro brando manchado de batom.

Como vemos neste fragmento, as mudanças na configuração identitária tornam-se evidentes. Se, inicialmente, a narrativa elucida a representação de uma mulher “passiva" e queixosa, logo a seguir, essas características se liquefazem, pois a protagonista inicia um longo processo de defesa. A fim de proteger o eu das agressões contra suas exigências pulsionais, este processo desloca não só a identidade mas também o próprio desejo.

Como um produto pronto para consumo, Adelina muni-se de todos os atributos femininos de sedução: “sublinhou os olhos”, “escureceu os cílios”, “espalhou perfume no rego dos seios”, vestiu “meias de seda negra transparente”, etc. Pronta, a personagem quer, agora, preencher a lacuna que a separa das relações de alteridade, de laços afetivos e de identidade. Para isso, Adelina busca certo distanciamento das instâncias legitimadoras sociais e dos espaços de controle, deixa sua casa e adentra os limites da metrópole pós-moderna.

A personagem vê suas possibilidades de reconstrução identitária na dinâmica do espaço, na possibilidade de anonimato e não-mapeamento que a metrópole propicia. Na boate, a protagonista se sente à vontade para assumir um outro nome. Adelina, agora, é Gilda. E Gilda está livre para transitar e multiplicar relações efêmeras, ou seja, relações de curta duração que sustentam a reconfortante consciência de que você não precisa sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-las intactas por um tempo maior. Como é de se esperar, nesse tipo de relação, as possíveis configurações fixas, sólidas, com seu cortejo de vetustas representações efetivas recém-formadas envelhecem antes de poderem cristalizar-se. Nenhum fluxo se orienta para o laço, o sexo é a síntese, mas efetua-se como espasmos e não como consolidação do laço e da alteridade.

O segundo momento da narrativa é reservado para o clima de sedução que se instala na boate e antecede o apogeu da narrativa. O ambiente de fascínio é evidenciado e fortalecido pela troca de olhares, contatos íntimos e, principalmente, pela narração de características corporais denotando excessiva sensualidade. Como se depreende, produtos prontos para serem consumidos, os personagens desfilam atributos sedutores.

No jogo de sedução, os anônimos personagens vão se aproximando da protagonista, primeiro “o negro”, depois o “moço dourado com jeito de tenista” e, finalmente, “o mais baixo”. Não há, entre eles, troca de memórias, menção a continuidades ou diálogo efetivo. O breve momento de reconhecimento, como é comum na obra de Caio Fernando Abreu, é seguido da efetivação sexual. Após o rápido ritual de sedução entre os atores sociais, o narrador heterodiegético conduz uma performática cena de sexo em que os três personagens se misturam à protagonista num revezamento exacerbado de consumo de possibilidades das práticas sexuais.

Na cena seguinte, “em frente ao espelho de corpo inteiro”, a protagonista, como garante o narrador,
“não era mais Gilda, nem Adelina nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de dentes e unhas, lanhados de tocos de barbas amanhecidas, lambuzadas de leite sem dono dos machos das ruas. Completamente satisfeita.”

Esperava-se que o sexo preenchesse a lacuna da alteridade, não admira que, como garante o sociólogo inglês Anthony Giddens, tenha crescido sua capacidade de gerar frustrações e de exacerbar a própria sensação de estrangulamento que se esperava que curasse. O que ocorre em Os sapatinhos vermelhos é, novamente, um esvaziamento identitário da protagonista. A vitória de Eros na grande guerra da satisfação é, na melhor das hipóteses, segundo Zygmunt Bauman, uma vitória de Pirro. Pois, a satisfação imediata garantida não é sinal do fim, mas de recomeçar.

Como afeto dissonante, o espasmo de Adelina parece reescrever o ideal pós-moderno, ou seja, recomeçar, reorganizar, ressemantizar sem rupturas drásticas, enfim rever e redirecionar a identidade, o passado e o desejo. Entretanto, apesar do espasmo, da exuberância das práticas sexuais e dos consumos urbanos, bem como da plasticidade de todas as práticas simbólicas e de produção do sentido, a frustração ainda parece dominar a cena textualmente inscrita e, digamos, ousadamente, também o sujeito pós-moderno que transita caminhando por espaços e espasmos de demolição.

Sobre a intensidade do movimento


Procurar na perseguição da metáfora uma chave comum de decodificação é, nessa poesia, declinar em consumo – “O poema ensina a cair \ sobre os vários solos”, nos diz Luiza Neto Jorge. É a própria escrita poética, também em Casé Lontra Marques, que propõe o movimento: ora se aproximando da atenção ora do sarcasmo é como aceitamos intensificar uma desorientação (ou uma “reorientação dos atos de distração”), o passo que rompe o silêncio e conduz ao desconforto (uma possibilidade de alargamento da intensidade).

A densidade do céu sobre a demolição é uma contundente proposição de fala, o poeta persegue “tanto ritmos quanto cores” e compõe, em movimento de procura (por sintaxes, repetições, ressignificações), uma ácida e sofisticada crítica política da subjetividade: a poesia, “área de sobrevivência”, sem recusar a urgência do corpo depositado sobre o asfalto, propõe uma extensão da experiência, a possibilidade de “conhecer com mais braços para criar”; e o leitor é com-vocado (convidado a tomar a palavra), romper a fala ausente.

Apesar de tanto essa convocação quando a busca pela linguagem serem, desde Mares inacabado(primeiro livro do poeta), horizontes específicos e produtivos da escrita do poeta, em A densidade do céu sobre a demolição, os horizontes são potencializados e a escrita encontra seu momento de maior sofisticação – e até a definição de uma poética é, aqui, enfaticamente, intensificada. Casé Lontra Marques transita pela história da literatura, pelos tipos de discursos, pelos recursos poéticos e narrativos com maestria, o poeta compõe o movimento que não se pode recusar.